sexta-feira, 20 de maio de 2011

Olhai os lírios do campo

Foi no fim de semana passado que Karlo se deslocou, na companhia de eleitos familiares, à bela região Jebala do Magrebe, e, ao aproximar-se da aldeia de Jajouka, cheirou os aromas do campo. Nada de Famel, Zundapp, por ali, burros e cavalos...e mulheres em trajes tradicionais a trabalhar os campos...e homens sentados em torno de mesas à beira da estrada bebendo chá e discutindo o mundo...e um brilho majestático nos ares, o Sol...e milhões de flores pelos campos, vermelhas, amarelas...e as neuropatias descansaram, os sangues fluiram, sentimos o prana, as dores foram-se embora...e eis que o Karlo sai do carro com duas malas, saltitante, e leva-as, sob a alçada do sorriso acolhedor do seu amigo Bachir, até à sombra do alpendre com tectos em padrões islâmicos geométricos por homem extinto desenhados nos anos 70...e assim compreendeu como a doença e a dor são produtos da mente, porque mais tarde, alvo de bateria de rhaita e tbila implacáveis, deixou-se alegre e discretamente possuir por Pan e, descalço, palhas na mão, repetiu os gestos da antiguidade perdida, descalço num chão de cimento, e hoje, ao escrever estas palavras, no conforto do lar, a irmã dor está de novo presente, tudo se perspectiva; e há que respirar, sorrir, rir às gargalhadas, mesmo, dançar, a energia que nos atravesse!

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Music Promenade - Miles Davis Pangaea







Pangaea retrata o concerto que Miles Davis deu em Osaka (Osaka Festival Hall), na noite de 1 de Fevereiro de 1975. É álbum irmão de Agharta, correspondente ao concerto dado na matinée do mesmo dia. Consistem em improvisações extensas e deambulatórias, dirigidas pelo mestre. Os músicos: Miles (trompete, órgão), Sonny Fortune (sax soprano, sax alto, flauta), Michael Henderson (Fender bass), Pete Cosey (guitarra, synth, percussão), Reggie Lucas (guitarra), Al Foster (bateria), Mtume (congas, percussão, water drums, caixa de ritmos).
Trata-se de música verdadeiramente aventureira, onde na escuta surgem sensações como as do transe, o funk potente e inexorável.




Este álbum insere-se num período do processo criativo de Davis, cujo início podemos situar em 1970 com A Tribute to Jack Johnson, caracterizado por um estilo específico de ritmo na bateria, minimal e menos jazzístico, baixo eléctrico de inspiração funk, esta secção rítmica com instruções específicas para se manter independente das influências dos solos dos outros instrumentos, não os seguir - esta instrução foi dada explicitamente a Michael Henderson no contexto das sessões no Cellar Door, em que Davis o proibiu de seguir os solos de Keith Jarrett, pertencente ao grupo nessa fase [1]. A esta secção rítmica adiciona-se um layer de electrónica e percussão (guitarras, teclados, congas) tipicamente de grande complexidade rítmica e melódica, e é sobre esta estrutura que trabalham os solistas. Davis , neste período, utiliza conscientemente diferentes estilos e técnicas, que combina num processo de multilayering controlado em tempo real. Trata-se de uma magistral expressão do multicultularismo do séc. XX, onde ouvimos simultaneamente rock, jazz, funk, músicas electrónica e concreta, música clássica Indiana, combinadas como meta-arte.




Estes diferentes estilos foram obtidos por inspiração de diversos artistas, como Buddy Miles, que Davis respeitava, tendo sugerido a Jack DeJohnette que utilizasse a sua técnica minimal [1]. Como compositor, a influência de Hendrix é também presente - ouça-se os momentos instrumentais da sua obra We Gotta Live Together (Band of Gypsys, 1970).




É também patente a influência de um grande nome da música do século XX, Karlheinz Stockhausen, seja na complexidade rítmica no limiar da percepção característica deste período - no caso deste álbum, nuvens eléctricas de percussão resultantes das intervenções de Cosey, Lucas, Mtume e Foster, que atingem por vezes graus de abstracção reminescentes de obras do compositor alemão como Kurzwellen ou Kontakte. Encontramos também em muitas obras deste período sugestões da forma-momento amplamente demonstrada na obra Momente, o Eternal Now: a estrutura geral da obra não segue uma linha narrativa convencional, com clímax e catárese. Antes, estamos muitas vezes perante momentos eternos, não necessariamente relacionados com momentos precedentes, situação que procura a transcendência da própria noção de tempo. Escreva-se que Davis referiu a importância deste compositor no seu processo criativo [2].




A influência de Jimi Hendrix, na supracitada Band of Gypsys, encontra-se directamente, no fraseado das guitarras eléctricas de Cosey e Lucas, temperados por pedais wah, sendo que Davis chegou a procurar Hendrix para gravar sob a sua alçada [3]. O próprio Davis utilizava o pedal wah, característico do som de Hendrix.




É claro, estas influências não diminuem em nada o trabalho de Davis, nem lhe retiram qualquer originalidade. Ele utiliza-as conscientemente, e são ingredientes de uma concepção inteiramente sua. O seu cunho pessoal é total, e sentimos a sua presença constante, mesmo quando não toca. Percebemos o respeito dos músicos perante qualquer sua intervenção na trompete, na maneira como imediatamente diminuem a dinâmica. Efectivamente, Davis guia a improvisação, controlando os solos, intensidades, silêncios, introduzindo temas como Jack Johnson e Calypso Frelimo, que são distribuídos pelos diferentes músicos (por exemplo, temas tocados na trompete são "oferecidos" ao baixista Michael Henderson, que imediatamente os toma). A ligação destes grupos a Davis é extrema - um movimento do ombro de Davis é suficiente para alterar toda a música em tempo real. Percebemos que se trata de uma dinâmica de mestre e discípulos.






Quando falamos de Pangaea, uma nota importante é esta: há que ouvir o LP original, e o CD serve quando muito de complemento. Muitas vezes, nas reedições digitais, existe a obsessão na "pureza" do som, ou seja, procura-se o silêncio aonde não estão as notas. É o que acontece neste caso. Quando ouvimos o CD, parece que os músicos tocam num ambiente aonde não existe qualquer ruído, numa versão anódina, como que mergulhada em formol. O som digital do CD, que já tinha há anos, parecia-me muito bom, mas eis que ouço o LP e de repente estou a ouvir o ruído dos amplificadores quando os instrumentos estão em silêncio. Quando Cosey ou Lucas tocam com os dedos nas cordas, ouvimos o click característico. Quando Mtume percute a kalimba, percebemos que esta está amplificada. Estamos de facto a ouvir algo muito mais próximo daquilo que aconteceu naquela noite em Osaka. E estamos a ouvir muito mais. Só no LP percebi a real influência de Stockhausen, na disposição extremamente complexa de eventos sonoros, nomeadamente nas guitarras e percussão, um enorme espectro de frequências inaudível no formato digital. Os instrumentos sobrepoem-se uns aos outros, criando uma tensão que não é perceptível no formato digital. Parece que a opção na remasterização foi a de simplificar o álbum, dando primazia ao que é estruturalmente linear (bateria e baixo, solos), em deterimento da não-linearidade e complexidade (intervenções polirrítmicas nas guitarras, synth, caixas de ritmos e percussão) Muito simplesmente, baixaram o que acharam esquisito e aumentaram a bateria e os sopros (vamos lá tirar as barulheiras que isto afinal é Jazz!). Claramente a opção de Jazzificar, no pior sentido, uma obra que , na realidade corresponde simltaneamente à transcendência, e fusão, de vários géneros. Curiosamente, há momentos em que não ouvimos Fortune no LP e ouvimo-lo no CD. Recomendo vivamente o LP para quem tenha um bom sistema, e incluo fotos do mesmo, incluindo a bela capa em gatefold. O LP é duplo, e simplesmente excepcional.

domingo, 28 de setembro de 2008

Gris Gsid


O erro no título está na palavra Gsid, devia ser Gris. Claro, Dr. John. Gris Gris Gumbo Ya Ya. Já ouviram? Beleza total. Dançável em serenidade. Estou com sono e tenho uma mão a apertar o exó-fago. Exó-fago é aquele que come o exotérico. Ugh! Trocadilhos de pacotilha. Como dizia, estou com sono e pouca energia, e Gris Gris Gumbo Ya Ya é como uma mãe que nos embala no nosso sono, é muito bom. 
Agora já é o Monk Monk's Mood, a oração de Coltrane, discípulo aqui, mas mestre. E já me sinto mais bem disposto, pelo menos a semana que vem já começa a ganhar forma na minha cachola. Em relação ao erro Gsid, fez-me lembrar Syd Barrett, e micofilias diversas.
O grande músico Cornette Holeman esteve em Veneza (palácio Gatti) onde, com o seu quarteto mais recente, musicou o ritual de Iniciação/Expulsão do nível XXIII da A.A. ou Illuminatus, ou Refluxus, ou Eris, ou o que quiserem, onde, entre outros notáveis, estava presente Aleph Trance, que liderou o Combóio Mágico  que deu algumas voltas à sala de audiências aonde Claudio Merulo inventou as suas Invenções, no órgão que ainda lá se encontra (não há caruncho em Veneza). Heinzkarlo soube que Ali Hassan também lá estave, e outros directores de corporações mais ou menos Illumináticas no seu funcionamento. 
Morreu Mauricio Kagel e o mundo ficou ainda mais pobre do que já estava. Estamos a chegar ao lado direito da Gaussiana da música erudita escrita actual. Embora proliferem as instituições dedicadas à música contemporânea pelo Ocidente, a realidade é que é muito pouca a música escrita que não é funcional, ou seja, é rara a música que não é um exercício intelectual  feito com o objectivo de obter uma bolsa. Os grandes desapareceram. Stockhausen, Ligeti, Xenakis, Berio, Nono, e agora Kagel...eles não compunham para obter uma bolsa. As bolsas existem por causa do trabalho que eles fizeram nos anos 50, 60, 70...a música não tem objectivos burocráticos, é feita para se ouvir. Há que saber ouvir, claro...em resumo: poucos são os compositores actuais de interesse, e de qualquer forma a este imbecil local à beira-mar plantado, sim, plantado porque se trata de uma planta, um vegetal, a este burgo, digo, a música de jeito não chega. Contudo, na santa terrinha a "música Contemporânea" existe...mas ninguém percebe nada: ninguém sabe se é bom se é mau, se um gajo toca um quarto de tom acima, vulgo desafina, ninguém se apercebe, não há qualquer nesga de apreciação musical, e pensando bem, ainda bem...porque se começarem a "ensinar" nas escolas a apreciação musical então é que vai ser o descalabro. Já estou a ver algum totó empertigado, gordo e com uma camisola de lã castanha com as golas a sair azuis, com um ar de quem tem um tubo enfiado no cú, um merdoso, portanto, a dizer às criancinhas o que é que hão de gostar...o professor é um ignorante musical e lá no fundo sabe-o, mas recalca, só que a sua frustação vem ao de cima em comportamentos fascizantes de cariz sexualizante (ele baba pelos cantos da boca quando mostra discos do Vim Merdens às alunas boas) e assim cria uma geração de pessoas horripiladas e desconhecedoras...a vida é bela! Agora junto Euro e vou ver concertos a Bruxelas. Crrrrrr! Para quê observar a Orquestra Metropolitana a massacrar alegremente tudo e mais? Eles tocam tudo: ele é Wagner na segunda, Mahler na terça, Stockhausen na quarta (com bois a rodar potenciómetros para a esquerda e a direita), anona de Beethoven na quinta, e na sexta Luis Re-presas (sinfonia "Bolacha" em fuck Menor) e depois vamos todos para o Lux abanar o capacete e tentar seduzir a gaja do fagote! 
Agora Thelonious toca Bye-Ya e assim me despeço até a la proxaine: Bye-Ya!   

domingo, 29 de junho de 2008

Novo momento

Heinzkarlo, cercado de familiares, actualiza, em alegria, o seu blog! Sim, porque o que é um blog não actualizado? Nada! Apenas um conjunto de aforismos desactualizados. Assim, e no interesse de acompanharmos os movimentos da humanidade, trago uma pequena reflexão sobre as últimos acontecimentos em Siwa: o sacerdote Eyeh, chocado com o comportamento do grande Alexandre, que bebeu cambaleante uma taça de vinho no átrio do edifício central do oráculo, secretamente introduziu no corno direito da coroa oferecida ao conquistador um pedaço de papiro com a inscrição "Não do deus mas do boi". Vinte anos mais tarde maçaria infindas vezes os familiares com esta história. Muitos não a compreendem. Mas poucos compreendem Siwa.
Um abraço Heinz

sábado, 29 de março de 2008

Matriz de Rotação


Tarde mziana Heinzkarlo deseja ao leitor! Mziana como em estar no Driss em Essaouira a comer bolinhos e chá, mziano de olhar para a Kasouba de Chaouen, ou o superlativo mziano bzereref de mini hamburguers de carneiro em pão discóbolo Magrebino, tudo ao aroma de sândalo por dignos Xerifes projectado em braseiras dispersas pelo campo!

Sim, hoje é um desses dias. Heinzkarlo dispôs-se com amigos numa circunferência de reunião pela madrugada, amplo e pequeno almoço engoliu e Calor em Lata ouve, numa partenogénese feliz de livres associações.

Neste auspicioso dia, é proposta a Hein a seguinte reflexão: alguma vez o leitor vibrou ao ouvir a música de Schoenberg? Se tal nunca acontece, não há problema: basta praticar! Ponha um disquinho do Antão (por exemplo as 5 peças para orquestra op.16) e faça de conta que está a ouvir AC-DC, abane o capuccino! Isto porque há música cuja audição deve ser praticada! Ao contrário do que a escola intuicionista de Pamela Margot e outros afirma, existe uma coisa que é saber ouvir!

Por exemplo, aos 3 minutos da acima referida obra psicadélica de Blues (qual? hehe) Heinzkarlo pasma-se perante a seca bateria, o que aumenta localmente no espaço-tempo as fronteiras conceptuais de Karlito! Repare: é bom aumentar o volume da nossa fruição artística. O que não quer dizer ouvir Toy (o Bach pimba). É uma arte, ouvir...

Quem acha que sabe ouvir e gosta de "primeiras impressões" deve ter cuidado para, com o tempo, não se transformar num ovinho ridículo de parolos paradigmas. Aprecie a segunda impressão, aprecie mesmo a sua impressão de ordem n! Vista um Zoot Suit, ponha um Schoenberg e abane as ancas, numa hierática atitude centro-africana!

E, se puder, vá comer um bolinho ao Driss. Um abraço aos amigos Khemadja.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Simeon Le Bon


Ontem, Heinzkarlo foi ao Bairro Alto ver o concerto dos Silver Apples. Mais precisamente: o sobrevivente, Simeon, e a sua parafernália de instrumentos electrónicos artesanais. Muitissimo bom...citando imprecisamente Brahma Dionysos (também presente no concerto): "De vez em quando é preciso vir cá um dos gajos velhos para vermos como é que se fazem as coisas". Simeon é um velho freak/hippy dos sixties, mas vê-se a inteligência, o trabalho...a vida. Uma vida dedicada a um estilo de música absolutamente poético e original. E o bom gosto. Belíssimos samplings. Grandes ritmos, melodias subtilmente atonais e minimais, a voz crua de Simeon...parecia a execução de um ritual de uma religião em desuso...por detrás de tudo, a felicidade em tocar, a simplicidade do gesto de quem é natural no que faz...algo de criança naquele velho feliz. Um grande à vontade...foi um bom momento. O homem mexia-se de uma maneira interessante, um corpo seco e compacto oscilando com as sinusóides num eixo horizontal. Inspirador...Heinzkarlo, e os seus músculos contraídos na procura da transcendência, agradeceram.

terça-feira, 4 de março de 2008

Buddy

Não sabia quando escrevi o texto anterior: Buddy Miles morreu a 26 de Fevereiro passado. O pai dele, George Miles Sr., tocou contrabaixo com Duke Ellington, Count Basie, Charlie Parker e Dexter Gordon. A alcunha "Buddy" vem do grande baterista de jazz Buddy Rich. O baterista Jack de Johnette conta que circa 1970, Miles Davis dizia-lhe: "toca como o Buddy Miles". Quando perguntaram a Buddy como queria ser lembrado, respondeu: "The baddest of the bad. People say I'm the baddest drummer. If that's true, thank you world". Era um mestre. Rest in Peace, brother.